Angola: uma inesperada surpresa?

1
Nas últimas semanas, assistimos a uma vergonhosa limpeza das consciências de vários actores do mundo dos negócios e das empresas, da banca, da política e não só.
Isabel dos Santos, até há muito pouco tempo considerada como uma verdadeira e bem sucedida empresária, caiu em desgraça por causa de alegadas ilegalidades divulgadas no âmbito do chamado Luanda Leaks.
A quantidade de pessoas que, de um momento para o outro, deixaram de a conhecer e afirmaram nada saber sobre os seus negócios.

2
A pergunta que me ocorre é muito simplesmente esta: em que mundo vivem todos os que desempenharam esta farsa? Como não têm vergonha para, agora, se demarcarem de Isabel dos Santos quando foram sócios, assalariados, prestadores de serviços ou simples testas de ferro.
Algo me incomoda quando assisto a um espectáculo tão ridículo e nojento: são cães que não conhecem o dono. Essa figura é muito rara entre os verdadeiros canídeos que, na esmagadora maioria dos casos, são amigos e fieis aos seus donos até ao fim.
Mas estes "cães" dos negócios, da banca, da política, das empresas de consultoria ou dos gabinetes de advogados têm uma visão muito mais pragmática. Souberam estar perto quando tudo corria bem e Isabel dos Santos parecia intocável. Agora forem como ratos.
Aparentemente, esse estatuto de intocável está comprometido e todos assobiam para o lado e fazem de conta.
Isabel dos Santos espelha claros indícios de pouca transparência  nos negócios e viveu longo anos sob a asa protectora do pai, prosperando de forma, no mínimo, esquisita.

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Pessoalmente, não acredito que o Estado Angolano leve até ao fim todo este processo pois isso seria por o dedo numa ferida estrutural. Sabemos como tudo começa. Ninguém sabe com poderia acabar. E, francamente, quem quer arriscar a lavar tanta roupa "alegadamente" tão suja?
Estou convencido que Isabel dos Santos, na pior das hipóteses, será coagida a devolver parte do dinheiro.
Mais do que isso não acredito.

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Enquanto isto decorre, a maioria do povo angolano continua a viver na miséria (ou quase). E isso é que é revoltante pois passa-se num país que tinha todas as condições naturais para ser um espaço de prosperidade e, no mínimo, assegurando uma vida digna aos seus cidadãos.
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in Jornal Tornado (15/02/2020

Vergonha

1
O episódio da tentativa de silenciar o deputado André Ventura aparentemente por causa do uso excessivo da palavra “vergonha” é lamentável. Em qualquer contexto mas mais ainda por ser protagonizado pelo Presidente de uma das principais instituições da democracia portuguesa: o parlamento.
Pessoalmente, discordo em absoluto do que este deputado populista de extrema-direita defende e representa. Mas, enquanto cidadão e enquanto deputado eleito ele tem todo o direito de apresentar e defender as suas opiniões. Alguns milhares de portugueses deram-lhe esse poder para o fazer na Assembleia da República (AR).

2
O facto do Presidente da AR não concordar com o que o deputado diz não lhe dá nenhuma legitimidade para o admoestar. E, muito menos, para lhe dizer que palavras pode ou não usar. Como é óbvio, naquele espaço, o deputado não pode insultar ou ser de alguma forma incorrecto com os seus pares ou com outras pessoas. Mas, usar a palavra vergonha algumas (ou, até, muitas) vezes não pode ser um motivo para o repreender ou tentar condicionar. A avaliação da prestação do deputado na AR será feita pelos eleitores no momento certo: as próximas eleições.
Além disso, estas tentativas do Presidente da AR apenas dão óptimos argumentos ao deputado André Ventura para se vitimizar e desencadear até alguma simpatia em potenciais eleitores...

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Portugal foi um dos últimos países a ter deputados populistas de extrema-direita a serem eleitos para o seu parlamento. Por agora, com uma expressão mínima em número de eleitos. O que urge é combater as suas ideias, desmontar os seus argumentos desmascarar as suas intenções e esclarecer a opinião pública sobre a essência do seu projecto e dos seus objectivos.
Em democracia, tentar calar é a pior opção. A força da democracia está precisamente na liberdade de expressão. De todos e não apenas daqueles que pensam como nós.
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in Jornal Tornado (15/01/2020)

Mordaça para os deputados de segunda categoria

1
As eleições legislativas e a nova Assembleia da República trouxeram, logo nos primeiros dias, um inesperado atentado à Democracia: três partidos (Chega, Iniciativa Liberal e Livre), por terem eleito apenas um deputado não constituíram formalmente um grupo parlamentar. Ficariam, por isso, impedidos de falar nos debates quinzenais sobre o estado da nação. Surpreendentemente, os factos são estes: num primeiro momento e com ligeiras diferenças de argumentação, votaram a favor desta decisão: PS, PCP, Bloco de Esquerda e Os Verdes; votaram contra: PSD, CDS e PAN.
Felizmente, por insistência do Presidente da Assembleia da República, houve marcha atrás e todos os partidos lá acabaram por aceitar de forma consensual que o princípio aplicado ao PAN na anterior legislatura se mantivesse válido até ser revisto o Regimento.

2
Apesar de ultrapassado, este atentado à Democraia teve contornos de escândalo e não compreendo como esta situação não motivou um vendaval político e no espaço mediático.
Vejamos as diversas facetas da questão:
-Antecedentes: na legislatura anterior, o PAN também só tinha um deputado mas o parlamento permitiu que pudesse participar e intervir como todos os outros 229 deputados.
-Disparates: (1) O que formalmente impediria as intervenções dos três partidos é o articulado do próprio Regimento da Assembleia da República; este é o primeiro disparate. (2) O segundo disparate (talvez mais grave...) é o facto de, logo em 2015, quando a questão se colocou a propósito do deputado do PAN, em vez de uma decisão precária e abrindo uma excepção não se tivesse logo ali alterado o Regimento para que o problema não se repetisse. Sobretudo quando era já muito claro que havia pequenos partidos, à esquerda e à direita, que estavam na eminência de eleger deputados. (3) O terceiro disparate (felizmente não concretizado) seria a tentação antidemocrática de consagrar, por maioria simples, a aberração de na actual Assembleia da República passarem a existir dois tipos de deputados: os de primeira categoria (eleitos por partidos que conseguiram constituir um grupo parlamentar) e os de segunda categoria (eleitos por pequenos partidos).

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Esta tentação de silenciar pequenos partidos invocando cinicamente o Regimento (e, repito, ignorando uma boa prática anterior...) é absolutamente inaceitável num Estado democrático em que o Parlamento é a casa onde se exprime a vontade dos cidadãos que com o seu voto elegem os deputados. Como é óbvio, no dia das eleições, os votos são todos iguais e todos têm o mesmo valor de facto.
Veremos, agora, em que medida as alterações ao Regimento acolherão a pluralidade de opiniões, o respeito pelas minorias e o inalienável direito  à palavra que todos os deputados têm de ter.
Escrevo completamente à vontade e apenas por uma questão de princípio porque não votei em nenhum dos três pequenos partidos em causa.
Mas escrevo e interrogo-me: com base em que princípios é que o voto de eleitores do Chega, da Iniciativa Liberal ou do Livre vale menos do que o meu?

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Assim de repente, o que parece ser mais importante sublinhar é o receio de parte de alguns deputados em que o exemplo do PAN (que, em quatro anos, passou de 1 para 4 deputados) se repita.
Portanto, pensaram os 139 distintos deputados que tentaram aprovar esta inusitada e inqualificável decisão, que é melhor deixar de lado a Democracia e acautelar já o futuro incómodo em que a Assembleia da República possa acolher cada mais vozes divergentes. Mas, por muito incómodo que isso seja, trata-se das mais básicas de uma Democracia. Certamente já ouviram falar...
Em conclusão: em vez do debate franco e livre, em vez do saudável e desejável confronto de ideias alguns dos senhores deputados prefeririam aplicar uma mordaça aos deputados de segunda categoria.
Uma vergonha e um péssimo indicador ao nível dos princípios.
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in Jornal Tornado (15/11/2019)

Crimes e Violência

1
O fenómeno da violência doméstica contra mulheres é uma triste realidade e tem assumido números verdadeiramente assustadores e preocupantes no nosso país.
O quadro em que se desenvolve esta situação poderia parecer ser inevitável: herança cultural, machismo, mentes retrógradas, entre muitos outras razões.
Infelizmente, nem sempre quem deve proteger protege. Por vezes, nem a própria vítima formaliza as queixas. Algumas vezes, serão os vizinhos temerosos a condescenderem escudados no provérbio absurdo: entre homem e mulher não metas a colher.
Enfim, podemos encontrar muitas desculpas para o problema. Mas, mais difícil é encontrar explicação para quando o sistema policial e/ou o sistema judicial falham clamorosamente.
Quando as queixas não são valorizadas devidamente. Quando os agressores são absolvidos ou saem com ligeiras penas, raramente penas de prisão efectiva.
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Do meu ponto de vista, o problema tem de ser atacado de uma forma integrada a três níveis: em primeiro lugar, protegendo de imediato as vítimas de forma eficaz logo que haja sintomas de que algo pode vir a acontecer. Depois, criando condições efectivas para que as vítimas possam refazer a sua vida num contexto de liberdade e segurança. Finalmente, punindo dura e exemplarmente os agressores comprovados.
3
A época dos discursos moralistas e simpáticos já passou. Agora é o tempo de agir com determinação em defesa das pessoas (mulheres e, em menor escala, homens) ameaçadas, coagidas, agredidas antes de serem assassinadas. Os números estão aí, as notícias são recorrentes. Não se trata de uma opinião nem de um ponto de vista. É uma verdadeira tragédia com vítimas, algumas mortais. Por isso é tempo de dotar as forças de segurança dos meios e a Justiça das leis que impeçam que esta vergonha persista na nossa sociedade.
Dezembro/2019
Publicado no Nº 12 da revista "Sem Equívocos"

Europa: Duas ideias

1.
Lembro-me frequentemente desta história: foi em Nova York que me apercebi, pela primeira vez, que era um cidadão europeu. Pode parecer estranho mas é verdade. Somos muito diferentes dos americanos em muitas coisas e somos mais parecidos com os nossos parceiros europeus.
Isto não significa que não haja grandes diferenças entre um francês e um português, entre um alemão e um italiano ou entre um holandês e um espanhol.
Mas, temos algo de muito mais profundo que nos une. A começar (e talvez o mais importante) o facto de reconhecermos a diferença e a respeitarmos.
Reconhecemos (e valorizamos) as diferenças e encaramos esse facto como uma mais-valia. Como algo de natural porque, no essencial, a Europa e os europeus têm uma tradição democrática e de respeito por valores de solidariedade, de tolerância, de abertura e de partilha.
Essa matriz europeia que é partilhada por milhões de cidadãos está hoje a ser posta em causa pelos populistas e pelos ideias da extrema-direita xenófoba. Ao contrário do que apregoam, estes protagonistas não estão a lutar por mais Europa mas sim a desejar uma nova realidade em que a Europa se distancie da sua essência. Não estão a querer (re)construir a Europa supostamente ameaçada. Estão a querer fechar um espaço que é um espaço de liberdade e tolerância. Uma terra de oportunidades para os que a não têm. Por isso, a saga populista e xenófoba que desperta é uma das principais ameaças à Europa que construímos. E por isso tem de ser combatida com firmeza.

2.
Uma segunda ideia que anda no ar: o afastamento dos cidadãos europeus da Europa e do ideal europeu. Penso que essa é um dos maiores equívocos da actualidade. E é um equívoco que está a ser estimulado, em primeiro lugar, pelos inimigos da Europa e os que desejam a sua desintegração para conquistarem vantagem na pequenez dos seus territórios atrás de muros aparentemente protectores.
O que se passa realmente é um afastamento em relação à deriva inconcebível dos burocratas de Bruxelas que estão a querer impor uma União Europeia contra... a Europa.
Quando se quer construir uma nova realidade contra a vontade dos povos e à revelia da sua essência estruturada em torno de uma longa história comum, tudo só pode correr mal.
A Europa vive em paz há de 70 anos afirmando-se como um espaço de prosperidade, tolerância, desenvolvimento e solidariedade.
Infelizmente, nem sempre os decisores da União Europeia contribuem para que essa realidade se afirme e se reforce.
Esse é um erro colossal e pode sair muito caro a todos nós.
Pela Europa, pelos seus princípios e pela sua tradição, será fácil congregar esforços e pessoas. Esse é o caminho.
Setembro/2019

Publicado no Nº 11 da revista "Sem Equívocos"

Incompatibilidades

1.
As incompatibilidades são um dos temas preferidos da mais recente análise política. Parece que se descobriu agora o tema e a realidade que lhe está associada. Infelizmente, vários governantes e autarcas de vários partidos já prevaricaram. Mas, suponho, aqui ainda nenhum perdeu o mandato ou foi condenado.
A questão, se tivermos uma posição dura, é muito simples. Só que, em política, nada é o que parece.
Até onde pode ir a hipocrisia ao abordar este tema? Ou a falsa ingenuidade em que os alegados prevaricadores nunca têm consciência do que fizeram nem da ilegalidade em que estavam a incorrer.
Há algumas semanas, os jornais noticiaram a situação de um autarca que negociou com a empresa do pai...
De facto, a situação é grave. Sobretudo porque, perante a descoberta das alegadas ilegalidades, a fuga é sempre a melhor solução. O fingir de morto.
Pergunto, não seria possível escrever uma lei mais clara que determinasse as regras sem o menor grau de dúvida e esclarecendo  muito bem o que pode (ou não) ser feito?
Sobre a redacção das leis: será pedir muito se disser que me parece óbvio e normal esperar que o legislador seja eficaz? Com tantos advogados e juristas na Assembleia da República, não seria de esperar uma grande eficácia legislativa? Enfim...

2
Mas, se me permitem, há algo que não me sai da cabeça: qual será a dúvida que pode ter uma pessoa sobre uma situação como este simples exemplo: suponhamos que sou autarca. Preciso de comprar uns produtos ou uns serviços.
Primeiro princípio a adoptar: transparência e clareza. Definir bem as regras subjacentes ao Caderno de Encargos da compra a realizar.
Segundo princípio a adoptar: abertura de concurso para garantir a igualdade de oportunidades dos vários operadores.
Terceiro princípio a adoptar: não misturar família e amigos no negócio.
Defendo estes três princípios que me parecem oriundos do mais absoluto e genuíno bom senso. Acho até que deveriam ser universalmente respeitados.
Ora, se eu quero cumprir com estes três princípios, obviamente, não vou negociar nem fechar um contrato com o meu Pai ou com uma das suas empresas.
Será difícil perceber isto? Será preciso ser jurista para compreender (e aplicar...) estes três princípios?

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A questão das incompatibilidades não é difícil de interpretar nem de gerir.
O que se passa com muita frequência é a tendência para uma de duas situações: (1) uma sensação de impunidade ("Posso fazer o que quiser porque não serei apanhado") e (2) uma sensação de que a lei e a Justiça não funcionam pelo que, mesmo que seja detectada alguma ilegalidade, as consequências tarde (ou nunca...) se farão sentir.
Oscilando entre estes dois péssimos cenários, o assunto será tema de múltiplas conversas de café. Mas, o que realmente falta é uma acção concertada e eficaz. Esta situação redunda, muitas vezes, em demagogia anti-democracia e favorece o aparecimento de vozes populistas.
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in Jornal Tornado (15/08/2019)

Dos Amigos

Penso muito nos meus amigos. Nos mais recentes e nos mais antigos. Nunca escrevi sobre eles apesar de serem as pessoas mais importantes na minha vida. Ao ter este pretexto para escrever, ocorrem-me três frases ou três ideias que me parecem resumir muito bem o que penso. Não fui eu que as inventei mas gostava, se me permitem, de as usar hoje.

“OS AMIGOS SÃO A FAMÍLIA QUE ESCOLHEMOS”

Como tenho uma família muito pequena e considero como verdadeiros amigos apenas duas pessoas desse grupo, esta ideia agrada-me. E digo-o com alguma mágoa pois talvez fosse melhor se fosse de outra maneira. Não conheço em muitas famílias relações que sejam, simultaneamente, de família e de amizade. Pensando bem, conheço só uma. São cinco irmãos que se dão como verdadeiros amigos. E isso vê-se na relação próxima que estabeleceram  ao longo de muitos anos entre si. No entanto, não estão sempre juntos e são pessoas muito (mas mesmo muito...) diferentes e autónomas. Mas estão presentes sempre que é preciso. E todos o sabem. E todos cumprem esse desígnio de serem não só família. De serem também família.

“OS AMIGOS NÃO TEM DE ESTAR SEMPRE PRESENTES,
ESTÃO PRESENTES SEMPRE QUE É PRECISO”

A essência da amizade é mesmo isto. Estar presente com um gesto ou uma palavra sempre que é preciso. Ou, por vezes, estar apenas presente, mesmo que em silêncio.
Como é reconfortante sentir esse apoio forte como uma rocha. E, muitas vezes, nem é preciso pedir ou anunciar um pedido de ajuda. Naturalmente, como nos conhecem bem, os amigos aparecem, telefonam ou encontram qualquer forma de se mostrarem e de permitirem que lhes roubemos tempo. Eles que podiam estar em casa ou noutro sítio qualquer. Mas escolheram escolher-nos a nós e ao nosso problema ou circunstância.

“OS AMIGOS NÃO TEM DE ESTAR SEMPRE DO MEU LADO MAS SIM AO MEU LADO”

Finalmente, uma palavra para a discórdia, para diferença ou para a discordância. Ser amigo não significa (nunca significou) ter de deixar de ter opinião ou convicções. Quantas vezes podemos até estar em pontos opostos. Mas o respeito que nos merece um amigo implica isso mesmo: que ambos reconheçamos a diferença, se existir. Que pensemos: se fôssemos nós, talvez reagíssemos de forma diferente. Mas não quebraremos o elo. Podemos (e devemos) dizer sempre o que pensamos. Mas, a decisão do outro é soberana. Depois, basta estarmos presentes e ao seu lado. Para o bem e para o mal. Ali mesmo é o lugar do amigo.
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in Jornal Tornado (15/07/2019)

Vídeo e Liberdade

1. 
A nossa situação de crise económica e de subdesenvolvimento cultural tem conduzido a que, por um lado, a televisão seja o único meio de distração e de difusão cultural para a esmagadora maioria da população portuguesa; e, por outro lado, a que a informação televisiva seja a única para a maioria dos portugueses (minimamente) informados. 
Esta realidade é tanto mais preocu-pante quanto é notória a ausência de uma vertente cultural na programação televisiva e quanto mais descarada é a manipulação e distorção produzida nos serviços noticiosos da RTP.
Num outro plano, o efeito da televisão sobre a sociedade portuguesa é ainda mais preocupante: o (quase) completo condicionamento dos nossos hábitos pela programação está a conduzir a uma nova forma de ditadura. Quantas pessoas não saem de casa antes do fim do episódio da telenovela? Quantas pessoas estão, meses e meses, «presas» à infindável sequência dos episódios das séries televisivas semanais? Quantas pessoas (ou famílias), diariamente, interrompem os seus diálogos (ou nem sequer chegam a começá-los) por causa deste ou daquele programa da televisão? O estudo das respostas a estas e outras questões levar-nos-ia, concerteza, a algumas conclusões assustadoras. 
2. 
Paradoxalmente, neste contexto, afigura-se-nos do maior interesse o aparecimento dos aparelhos de vídeo. A sua generalização poderá constituir, a médio prazo, um instrumento importante para a libertação dos cidadãos-especta-dores da ditadura da televisão, apesar de, em certa medida, criar novos motivos de atracção pelo pequeno écran. 
As possibilidades do vídeo são enormes. Destaco apenas três: gravação de um programa, por exemplo, do 1º canal enquanto, ao mesmo tempo, se vê o 2º; programação de uma gravação de um programa qualquer que seja transmitido a horas em que o espectador não esteja em casa; aquisição ou aluguer de filmes. Estes três exemplos permitem-nos imaginar as transformações que o vídeo poderá provocar nas nossas relações com a televisão, com o cinema, com a família, com os amigos, etc. O vídeo fortalecerá a nossa liberdade de escolha. Poderemos usar o nosso tempo onde, como e quando quisermos. E poderemos, mais facilmente, ver aquilo que queremos com a consequente não submissão à programação da RTP. Ficaremos, também, muito mais disponíveis para a leitura, para outras actividades culturais e espectáculos, para o convívio com os amigos, etc. E já não teremos a velha desculpa de que «hoje dá um bom filme na televisão ...» 
3. 
Estas novas opções não devem, contudo, enfraquecer o nosso combate por uma televisão melhor em todos os aspectos, designadamente no da informação. Por uma televisão politicamente pluralista, culturalmente portuguesa e democrática, socialmente mobilizadora dos cidadãos para o desenvolvimento do Pais, nas suas múltiplas vertentes. Até porque o vídeo, apesar das suas virtudes não resolverá o problema da desinformação que os sucessivos governos têm imposto à «sua» televisão. 

(1) Apesar de o preço de vídeo ser ainda proibitivo, Joaquim Vieira, em artigo publicado recentemente no Expresso, avançava o número de um aparelho em cada dez lares portugueses. 
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Publicado na revista "Seara Nova" (Nº 13-Agosto/Setembro de 1987)

19 de Julho: As Eleições do Nosso Descontentamento

Os resultados das eleições legislativas de 19 de Julho revelaram, claramente, uma vitória e várias derrotas. A vitória: pessoal (personalizada) do primeiro--ministro Cavaco Silva e da sua «máquina eleitoral» (da televisão aos 18 meses de governação, da capacidade de mobilização do PSD aos seus tempos de antena, do estilo populista ao discurso simplista). Derrotas várias: em primeiro lugar, derrota do PRD, partido que motivou a queda do governo anterior e que pagou (quase) sozinho a factura. Derrota d CDU (PCP) porque, uma vez mais, não conseguiu crescer eleitoralmente e ainda porque não conseguiu convencer o eleitorado de que a mudança de estilo, de imagem e de linguagem desta nova coligação em relação à APU era real e duradoura. Derrota do PS porque não conseguiu fazer regressar os votos perdidos, em 1985, para o PRD (o PS baixou, mesmo em termos percentuais, em alguns círculos) e porque, se numericamente é agora o maior partido à esquerda do PSD, demonstrou enormes fragilidades durante toda a campanha, não conseguindo transmitir ao eleitorado a confiança necessária a um partido que aspira ao exercício do poder. Derrota, enfim, dos pequenos partidos (incluindo o CDS) porque ficou provado que, apesar dos contributos muito válidos (PSR, por exemplo) e da clara autonomia e originalidade de projectos (MDP/CDE, por exemplo), nenhum logrou alcançar representação parlamentar e nem sequer uma votação expressiva.

A NOITE DA SURPRESA 

Na noite de 19 de Julho. uma esmagadora maioria dos portugueses ficou surpreendida, sobretudo com a dimensão da vitória do PSD. As explicações para este acontecimento são múltiplas e, provavelmente, muito diversas. Contudo, três aspectos parecem decisivos: (1) a desunião reinante à esquerda; (2) a manipulação da comunicação social; (3) a influência decisiva da televisão. 
A imagem de desunião e confronto aberto que a esquerda deu de si própria foi fundamental para criar no eleitorado hesitante a necessidade de uma maioria homogénea. Que garantias teria o eleitorado perante uma eventual maioria PS/PRD/CDU? Seriam estes partidos, que durante a campanha e a pré-campanha se tinham combatido fraticidamente, a base de um governo estável, desejo da esmagadora maioria dos portugueses? Claro que não. Por outro lado, à direita, estava encontrado naturalmente o seu «chefe». Daí o resultado devastador do CDS. A vitória de Cavaco Silva foi, em primeira instância, a vitória da prometida estabilidade contra o real conflito que se vivia à sua esquerda. Se Cavaco Silva era um primeiro-ministro minimamente credível, Victor Constâncio era um líder de um partido que, pelo menos aparentemente, procurava apenas liderar a esquerda portuguesa. E isto partindo do princípio de que a liderança do PS era sólida e incontestada. Ramalho Eanes, pela sua atitude de quase anti-candidato, passou despercebido, nunca se afirmando como o real alternativa. Ao contrário do que alguns analistas escreveram, o eleitorado português não escolheu bem nem mal, consoante o seu posicionamento. E não escolheu pela simples razão de que não havia escolha possível. Cavaco Silva foi talvez o único que, desde início, compreendeu claramente esta situação e a explorou até às últimas consequências.
O segundo aspecto fundamental, o do controlo dos meios de comunicação social, designadamente da televisão. A vitória de Cavaco Silva não se construiu durante a campanha eleitoral. Durante meses, ministros, secretários de Estado e o próprio primeiro-ministro desmultiplicaram-se em visitas e inaugurações, todas devidamente cobertas pela RTP. Na televisão assistiu-se durante meses à exibição de inúmeros anúncios divulgando medidas governamentais, reais ou imaginárias, verdadeiras ou falsas. Num outro plano, atente-se no destaque dado pelos serviços noticiosos aos conflitos entre o PS e o PRD, desgastando assim a sua imagem. Numa perspectiva maniqueísta, de um lado aparecia a imagem de homogeneidade, trabalho e eficiência do governo; do outro, a luta desenfreada pelo poder na área da esquerda e a obstrução da acção do governo PSD. 
Em terceiro lugar, o papel decisivo da televisão nas opções eleitorais dos portugueses. Desde as últimas eleições presidenciais que a televisão assumiu (finalmente) em Portugal um peso fundamental na luta política. E até é fácil compreender porquê. É cada vez menor o número de leitores de jornais; a maioria deles concentra-se nos grandes centros urbanos e no litoral. A grande fonte de informação da maioria dos portugueses é a televisão. Quem, directa ou indirectamente, controlar a televisão é detentor de uma autêntica máquina de angariar votos. Mário Soares e Freitas do Amaral já o tinham compreendido aquando da pugna presidencial. Aliás, agora, não foi por acaso que Cavaco Silva rejeitou toda e qualquer possibilidade de participar nos habituais debates televisivos com os seus opositores. A própria directiva do Conselho de Comunicação Social sobre a igualdade de tratamento a todos os partidos acabou por se revelar uma preciosa «ajuda» ao PSD. O resultado desta situação foi o seguinte: durante meses, para além dos tempos de antena (pouco vistos) e das reportagens sobre as actividades pré-eleitorais dos partidos da oposição, ninguém contradisse a verdade «oficial». Esta é uma dura realidade que deverá ser reflectida e combatida por forma a que possamos continuar a viver num regime pluripartidário em que a alternância do poder possa existir, O que tem acontecido é que, cada vez mais. o eleitorado é condicionado na sua op-ção, Mas só este aspecto daria para um outro artigo.

PS: REFLECTIR PARA TRANSFORMAR 

«A Europa não recusa as opções de esquerda contanto que esta seja capaz de propor as respostas coerentes às situações que são as nossas, de europeus,»
Alfredo Margarido, O Jornal(24/07/81) 

Depois do «terramoto» de 19 de Julho que fazer com esta esquerda? Tudo indica que Cavaco Silva conseguirá governar nos próximos quatros anos. A esquerda terá de reflectir e assumir-se como oposição consciente, firme, crítica, construtiva e inovadora. De reflexão profunda e renovação se espera que sejam os próximos tempos. Há, agora, que ir à raiz dos problemas, eliminando os tabus existentes e começar, sempre que necessário, a percorrer decididamente novos caminhos. Com abertura, flexibilidade, realismo e ousadia. 
Na renovação da esquerda portuguesa cabe um papei primordial ao PS. Mas não exclusivo. O facto de ser o maior partido à esquerda do PSD, «obriga-o» a tentar captar e enquadrar (e não usar eleitoralmente!) todos os movimentos, pessoas e ideias que realmente passam contribuir para a construção de uma alternativa credível e eficaz ao cavaquismo. Se isso implica uma abertura do PS às outras tendências ia esquerda, significa também que esses sectores, sem sectarismos, cooperem com os socialistas e compreendam o seu papel aglutinador da alternativa. 
Isto significa, muito claramente, que não se justificarão novas participações eleitorais dos pequenos partidos. Se a diversidade e a diferença representam uma grande força cultural e política da esquerda, em termos eleitorais, é um erro clamoroso a dispersão sistemática de milhares de votos, em todos os círculos, sobretudo se se mantiver a actual legislação eleitoral. Seria muito mais válida a contribuição, irreverente e muitas vezes inovadora desses partidos mas num outro plano. A busca de novos caminhos para a esquerda portuguesa passa também pela procura de novas formas de intervenção. Se os partidos são o sustentáculo da vida política, não são, de forma alguma, o único meio para influenciar a opinião pública e os órgãos do poder. Se, em vez de aparecimentos episódicos durante as campanhas eleitorais, os pequenos partidos apostarem numa acção de sensibilização e informação constantes, talvez os resultados concretos sejam bem melhores. 
O Partido Socialista está ainda a viver sob a tutela de Mário Soares. Victor Constâncio foi, há meses, considerado como «líder de transição». E se os factos não confirmaram plenamente este juízo, também não o desmentiram de forma cabal. A liderança de Victor Constâncio tem sido oscilante; entre afirmações de iniciativa política fortes e decididas e vulnerabilidades gritantes em termos de táctica (veja-se, por exemplo, a evolução da sua postura e intervenção ao longo da última campanha eleitoral). Victor Constâncio obteve uma larga vitória no último congresso, mas ainda não conseguiu mudar o PS onde ele mais carecia: reforço da organização, renovação ideológica e rejuvenescimento dos quadros. Três tarefas urgentes, quanto mais não seja porque dentro de escassos dois anos teremos novas eleições (autárquicas e para o Parlamento Europeu). O PSD já compreendeu que na base dos sucessos eleitorais estão fortes organizações locais e por isso é, actualmente, o único partido que consegue «competir» com o PCP em tarefas de propaganda e mobilização...
A nível ideológico, foi já anunciada a II Convenção da Esquerda Democrática. Deseja-se que ela seja ainda mais ampla e participada. E que os resultados dos seus debates enriqueçam, no plano da acção política, toda a esquerda, designadamente a esquerda parlamentar. Ainda neste âmbito, porque não realizar, em finais de 1988, convenções regionais, distritais ou locais com o objectivo de estudar a participação da esquerda democrática nas eleições autárquicas e no exercício do poder local? 
A esquerda portuguesa tem de compreender as novas realidades sociais, científicas, económicas e culturais que este final do século XX apresenta. E tem de apresentar propostas concretas e realistas. Neste momento, parar significará entregar o poder à direita por muitos anos. 
Quanto ao rejuvenescimento dos quadros trata-se de uma necessidade imperiosa. É indispensável que os jovens participem activamente na orientação e definição de estratégias da esquerda. Não basta atribuir-lhe um ou dois lugares de deputados. Rejuvenescer significa, por um lado, responder ás necessidades e anseios reais dos jovens e, por outro, acolher os seus contributos certamente irreverentes, mas também enriquecedores e inovadores. O PS não deverá fugir a esta tendência. 

PCP: À ESPERA DA MUDANÇA 

No que diz respeito ao PCP há que aguardar a sua evolução interna e os resultados do debate interno que ocorrerá com a preparação do novo congresso. Fala-se em mudança, sucessão e renovação. A dúvida que subsiste é a de saber se as forças que internamente se manifestam a favor de uma mudança real conseguirão impor os seus pontos de vista aos protagonistas dos imobilismos tradicionais. 
A campanha eleitoral da CDU prenunciou, pelo menos na aparência maior abertura. Mas logo a «velha guarda» criticou essa estratégia invocando os maus resultados eleitorais. Se o desejo de mudança é uma realidade, qual a direcção a seguir? E que medidas concretas vão ser tomadas?

PRD: O FIM DE UM SONHO 

Por seu turno o PRD dificilmente conseguirá sobreviver ao abandono de Ramalho Fanes e à pesada derrota de 19 de Julho. O papel que o PRD pretendeu desempenhar na sociedade portuguesa esgotou-se. Quis ser um partido com uma nova ética política e cedo se emaranhou nos meandros e tentações da luta política, surgindo, cada vez mais, como um outro partido e não como o partido novo. Quis ser a base de apoio da futura acção política de Ramalho Eanes e acabou por provocar, com o acumular de erros, o desaparecimento da cena política do ex-Presidente da República. Quis situar-se na área da esquerda democrática e foi durante meses o sustentáculo principal do governo da direita. E isto para já não falar nos episódios lamentáveis da participação nas eleições autárquicas e da escolha do candidato presidencial. 
Agora, com apenas sete deputados e sem estruturas organizativas relevantes, sem um projecto claro e autómono da figura e exemplo do anterior Presidente da República, o PRD tenderá a desaparecer. Restarão os seus militantes, uma vez mais desiludidos, muitos dos quais homens e mulheres de esquerda, cujos contributos não deverão ser desprezados. Também deles se espera um contributo para a desejada renovação da esquerda portuguesa. 

O FUTURO: PREPARAR A ALTERNATIVA 

O novo Parlamento terá em mãos decisões fundamentais: revisão constitucional, regionalização, legislação laborai e eleitoral, situação na comunicação social, etc. 
Com tão ampla maioria do PSD, as tarefas da esquerda parlamentar estão muito dificultadas. Mas, sobretudo na questão da revisão constitucional, é importante que o PS não ceda nas questões vitais. Em causa estarão os fundamentos do nosso sistema político-económico; se a busca de consensos é positiva, não poderão ser sacrificados os princípios. 
A esquerda precisa de preparar, desde já, a alternativa para 1991. É necessário que toda a esquerda encontre novas formas de intervenção, novas ideias, novas áreas de reflexão. 
Se é o exercício do poder o fim último da acção política, neste momento, o mais importante é criar as condições indispensáveis para a construção de uma alternativa forte e coerente. Não se pode esperar calmamente pelos erros dos outros. A alternativa pela negativa experimentada nas últimas eleições foi um completo fracasso. Há que apostar decididamente numa nova forma de estar e ser oposição que justifique, em novas eleições, o exercício do poder. 
Portugal precisa de uma proposta de esquerda para uma política moderna, moderada, solidária e europeia.
Este «terramoto» de 19 de Julho mais do que uma catástrofe deve ser encarado como um estímulo. 
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Publicado na revista "Seara Nova" (Nº 13- Agosto/Setembro de 1987) 

Corrupção: Modo de Usar

1
O fenómeno da corrupção não é, infelizmente, recente. Não está circunscrito a uma área específica da actividade humana nem a uma região. Em Portugal, atingiu nos últimos anos uma expressão mediática que nos dá a sensação de estar em toda a parte e de ter uma dimensão muito grande. 
Além disso, estamos hoje mais atentos e alerta sobre essas práticas. E, sobretudo, começamos a deixar de as considerar inevitáveis ou aceitáveis. Mas isto não deve descansar-nos. A corrupção é um dos problemas mais sérios que temos no nosso país. Seguramente, é uma das causas da sua crónica falta de competitividade e do descrédito com que muitos portugueses olham para os políticos e outros agentes que circulam e actuam no espaço público.

2
Sempre que o tema surge numa conversa ou numa notícia, lembro-me de uma história que se passou comigo há mais de 10 anos e que foi um bom exemplo de como lidamos com a corrupção.
Um amigo meu, arquitecto de profissão, precisava de obter um documento de uma autarquia local para algum projecto em que estava envolvido. Para sossego dos leitores, posso garantir-vos que o documento necessário não escondia nenhum projecto ilícito nem era nada de ilegal. Tratava-se de uma formalidade administrativa que, quando muito, poderia ser demorada ou de complexa forma de obter.
Pois, perante uma situação absolutamente legal e definida nos procedimentos da autarquia, qual foi a pergunta que o meu amigo me colocou?
Um pergunta simples: “QUEM é que tu conheces na Câmara que possa ajudar a resolver este problema?”
Na altura não estranhei a pergunta. Até me pareceu lógica...
Mas, de facto, esta era uma pergunta perigosa e indicadora da forma como muitos de nós encaramos estas situações: em vez de querermos saber COMO se pode tratar de um assunto, perguntamos QUEM conhecemos que... possa dar uma ajuda, que possa resolver um problema (mesmo que não seja um “problema” mas sim uma formalidade administrativa). QUEM nos pode resolver (ou ajudar, ou dar uma palavrinha, ou...) a questão?
Esta segunda pergunta é, infelizmente, comum e mostra bem como lidamos com a Administração Pública ou com muitas outras entidades. 

3
Queremos sempre que alguém abra uma excepção, que nos trate de forma diferenciada, que nos resolva uma situação, que nos dê uma ajudinha, etc. Daqui a pouco estamos à espera que “feche os olhos” ou que seja “compreensivo”...
Se esta atitude não for suficiente, podemos ainda equacionar que esse gesto terá um custo e, em muitos casos, estamos dispostos a pagar.
Ora, tudo isto são as bases e um “modo de usar” a corrupção. Pode ser a pequena corrupção em troca de uma nota de 10 ou 20 euros. Mas... não deixa de ser corrupção.
O que potenciou esta natural predisposição em usar estes mecanismo de obter algo em troco de uma compensação. 
Se fazemos isso para obter documentos legais ou meras formalidades, imagine-se o que alguns estão disponíveis para fazer para obterem um contrato de milhões.

4
A corrupção é uma realidade trágica. Podemos continuar a assobiar para o lado ou a dizer que isso são os outros que fazem. Mas é tempo de sermos nós a dizer “não” e a mudar comportamentos no dia-a-dia.
Essa deve ser a nossa primeira tarefa para ajudar no combate à corrupção. Se nós mudarmos, se contribuirmos para a mudança, se denunciarmos o que se passa, talvez consigamos evitar o mau desfecho que toda esta situação anuncia há muito tempo. 
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Publicado no Nº 10 da revista  "Sem Equívocos"

Da Memória

1
Ao longo de meses e meses temos assistido a um fenómeno imprevisto no quadro da saúde mental da população portuguesa: a memória e a sua qualidade quando algumas pessoas se sentam nas salas da Assembleia da República onde decorrem os trabalhos de Comissões Parlamentares de Inquérito. É um problema estranho e para o qual os especialistas não encontraram explicação científica. Curiosamente, nas suas pesquisas, os investigadores do fenómeno constatam que o problema afecta pessoas que, num passado muito recente, estavam a desempenhar funções profissionais de elevada responsabilidade e ocupando cargos públicos de relevo em Portugal ou até a nível internacional. Mais imprevisto e surpreendente ainda é que os problemas evidenciados de falta de memória são absolutamente selectivos: há factos (decisões, opções, etc.) que se apagaram de forma dramática e aparentemente irreversível. Mas, as mesmas pessoas continuam a desempenhar outras funções igualmente de relevo e grande responsabilidade. Também não foi conhecido nenhum caso com evidência de que estão a ser acompanhadas por um neurologista (ou outro especialista) no sentido de se tratarem e de recuperarem desta triste condição de saúde. Sobretudo porque são pessoas que ainda terão tanto para dar e, pelo menos algumas, estão longe da idade de reforma.
2
Não sendo eu um especialista em psicologia, neurologia ou qualquer outra ciência que possa estudar o fenómeno, continuo intrigado e preocupado.
E comecei a pensar: uma pessoa normal toma uma decisão que envolve a aplicação num projecto de milhões de euros. Ou dá o seu aval a que outros recebam por empréstimo milhões de euros. Será que vai esquecer essa decisão com a facilidade como já esqueceu o que comeu ao almoço em 3 de Setembro de 2007? 
Consultei vários livros em que reputados autores e cientistas explicam o funcionamento do cérebro e os mecanismos da memória. Em nenhum encontrei uma explicação ainda que parcial deste fenómeno. Portanto, estaremos perante algo de novo e que poderá gerar uma nova área de investigação ou poderá ser objecto de teses de doutoramento. Ou poderá ainda ser criada uma fundação para patrocinar esse estudo. Mas, sem a menor dúvida, temos de fazer um esforço sério para que este fenómeno seja estudado e desvendado algum mecanismo que permita a sua prevenção no futuro. A bem da saúde mental do nosso país e para que não haja mais vítimas. Sobretudo pessoas que, durante anos e anos, deram o melhor de si para gerir bancos, empresas ou ministérios. E, agora, estão completamente abandonados no infortúnio e na desgraça de não saberem o que lhes aconteceu e o que se passa com uma faculdade essencial como a memória. Estão certamente desesperados com a sua condição e, tendo recursos financeiros provavelmente limitados, estarão ansiosos e preocupados com o seu futuro: sem memória, sem emprego e sem esperança em encontrar novas oportunidades de trabalho. Há que fazer alguma coisa. É urgente.
3
Ao escrever este texto não deixei de pensar na minha avó que me ensinou: “apanha-se mais depressa um mentiroso do que um coxo”... Como estas palavras me parecem cada vez mais sábias! Se fosse viva, a minha avó talvez encontrasse com rapidez a solução para a explicação deste inusitado fenómeno. Imagino-a a analisar a situação e a dizer que estas vítimas da falta de memória não estão doentes. Não. Nada disso. Talvez apenas tenham apenas uma obscena falta de vergonha. Obrigado, avó!
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in Jornal Tornado (15/06/2019)

O Senhor Berardo

Quando penso no Senhor Berardo, não sei nunca se o que me irrita mais é a existência de pessoas como ele ou a subsistência de um sistema judicial que permite que pessoas como ele vivam impunemente. 
Pessoas que desejem pensar apenas na sua vidinha e ganhar o mais possível e com o menor risco são muitas e existirão sempre. Mas, essas mesmas pessoas vangloriem-se dos seus “feitos” em plena Assembleia da República é muito mais raro.
Apesar de, muitos dos que foram prestar declarações às recentes Comissões Parlamentares de Inquérito, terem literalmente gozado com os deputados e, por extensão, com todos os cidadãos. Enfim...
O Senhor Berardo irrita-me. A sua história e o que ele representa também. Mas, devo confessar que mais me enojam os que, em cargos de governo e na banca, apoiaram os seus desvarios e as suas pretensões. Sem garantias reais e sem cumprimento das regras mais básicas de avaliação de risco na concessão de crédito.
Se um de nós desejar pedir um empréstimo de 100 mil euros à banca, tem um longo e complicado processo a percorrer. Terá de penhorar a casa em questão e ainda de dar garantias pessoais ou arranjar um fiador.
No caso do Senhor Berardo, tudo foi muito mais simples e rápido. Responsabilidades? Estão em sucessivas Administrações de Bancos e na sua incapacidade de dizer “não” e de conduzir o processo com honestidade, profissionalismo e isenção. Não foi possível.
E também esses responsáveis ficarão por punir...
Agora, mil milhões de euros depois, o que se pode fazer? Não conheço em concreto a lei aplicável a este caso. Mas, certamente, o que ele fez não poderá ser considerado legal... Por isso, cumpra-se a lei. Se a lei não existir, redija-se uma lei que evite (ou desincentive) estes comportamentos no futuro. Todos nós temos uma palavra a dizer sobre isto. A primeira que me ocorre é: basta! A segunda é: justiça!
E, naturalmente, o desejo de que em Portugal muito rapidamente se criem condições objectivas para evitar estes casos ou, no mínimo, investigar, julgar e condenar os culpados de uma forma célere e exemplar.
É o mínimo.
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in Jornal Tornado (19/05/2019)

Marcelo

1.
Muito se tem escrito e falado sobre o estilo de Marcelo Rebelo de Sousa no exercício das funções de Presidente da República. A sua popularidade é inquestionável e surpreendente. A sua presença é constante e há quem diga que isso o vai desgastar. Há quem anteveja um fim menos feliz e considera um erro tanta exposição e tanta actividade.
A minha convicção é a de que este estilo é bom para Portugal e para a nossa democracia. Não podemos esquecer que Marcelo sucedeu ao pior Presidente da República que Portugal teve: Cavaco Silva. Marcelo tem sido tudo aquilo que Cavaco nunca quis nem soube ser: um Presidente próximo das pessoas, envolvido com a nossa vida, com os nossos problemas, com os nossos sucessos e com os nossos fracassos. Penso que a palavra que melhor o define é mesmo esta: genuíno.
Podemos nem sempre estar de acordo com o que diz. Mas temos de reconhecer de que sabe falar e não tem medo de ter opinião. E, sobretudo, sabe usar a palavra para, no momento certo, encontrar a forma de influenciar a vida política.
Sendo um homem inteligente e um comunicador nato, soube desde o princípio usar a comunicação como peça essencial do seu mandato. Enquanto Cavaco se refugiava em silêncios e em meias palavras (para já não falar em intrigas...), Marcelo é claro, transparente e, sobretudo, tem um sentido muito forte da oportunidade. Sabe quando falar e o que dizer. E mesmo os silêncios são instrumentos de comunicação.

2
Cavaco foi uma nódoa e os efeitos nefastos do seu mandato vão perdurar por muito anos. Se durante 10 anos anos fez do silêncio o seu refúgio, aproveita agora para revelar pormenores confidenciais e pessoais sobre os seus interlocutores enquanto exercia o cargo. Trata-se duma estratégia de quem não tem princípios. Cavaco publicou dois livros ditos de memórias mas que são, antes de mais nada, de actos de vingança. São textos de quem desconhece que revelar uma conversa privada não respeita o interlocutor.
Não interessa se os seus interlocutores (José Sócrates, Passos Coelho ou outros) são ou não pessoas honestas e recomendáveis. Se tinha dúvidas, Cavaco podia, na devida altura, tomar uma posição e decidir alterar o rumo dos acontecimentos.
Mas, a sua opção foi sempre o contrário: de uma forma pouco ou nada construtiva, escreve uns anos depois o que muito bem he apetece sem (como habitualmente...) direito a contraditório e sem que os visados possam responder. A não ser que decidissem enveredar pelo mesmo caminho e revelar o que Cavaco lhes disse noutras conversas...
Curiosamente, Cavaco sempre reclamou para si a honestidade absoluta apesar de, por mais de uma vez, terem surgido dúvidas em relações muito pouco recomendáveis no âmbito do Caso BPN, por exemplo.
Mas, Cavaco sempre preferiu usar a figura de "virgem ofendida" em vez de esclarecer e de mostrar factos que desmentissem cabalmente o que se apareceu na comunicação social.

3.
Portugal teve, no pós-25 de Abril, cinco Presidentes da República eleitos: Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa.
A história saberá interpretar e qualificar o seu papel e importância para Portugal e para a Democracia.
Marcelo está a ser, talvez, aquele que mais próximo esteve do Presidente ideal. Pelo menos, está a sê-lo no momento presente.
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in Jornal Tornado (15/04/2019)

A felicidade depende de nós

"
Concurso de circunstâncias que causam ventura.
Estado da pessoa feliz.
Bom êxito.
"
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 

1
QUASE
A questão da felicidade é uma das mais antigas. De certa forma, nós somos os eternos insatisfeitos que ambicionamos alcançar um estado em nos possamos sentir felizes. E fazemos quase tudo para que isso aconteça. E, aqui, a palavra essencial é... "quase". Sim, a palavra "quase" pois serão ainda poucos os que, no seu dia-a-dia, fazem por ser felizes.
Em primeiro lugar, a nossa via profissional sempre muito intensa e desafiante, nem sempre nos recompensa depois de tomarmos as decisões felizes, de nos comportarmos de forma adequada ou de contribuirmos para o bem estar de outra(s) pessoa(s). Temos 24 horas por dia mas, de facto, temos pouco tempo para ser felizes...

2
DEPRESSA
Depois, suponho, seria importante, fazermos todas as coisas (as simples e as complexas, as importantes e as triviais) com tempo e saboreando cada momento. Talvez não seja já possível eliminar a pressa mas... podemos tentar com a mesma intensidade com que nos dispomos a andar mais depressa, a responder mais rapidamente a um email, a almoçar de pé numa cafetaria, a exceder sistematicamente os limites de velocidade nas estradas (e a pagar as multas...), a lamentar a falta de tempo para tudo e mais alguma coisa.
A minha avó costumava dizer: "Depressa e Bem há pouco quem" e tinha razão. Muitas vezes somos tentados quase a fazer por fazer. Por nenhum motivo em especial. Apenas porque estamos focados noutro assunto ou noutra realidade. 

3
FELICIDADE
Do meu ponto de vista, a felicidade pode assumir formas muito diversas e variadas. E acontecer onde menos acontece. Ora, o que me parece cada vez mais claro é que, raramente, não consideramos a questão da da felicidade como uma prioridade importante e urgente. 
De alguma forma, procuramos a felicidade onde ela não pode estar mas onde estão muitas vezes ilusões passageiras que nos parecem a felicidade: dinheiro ou poder. 
Mas, como sabem muitos ricos e poderosos infelizes, a verdadeira felicidade não reside naquilo que se compra, nem no que se rouba, nem naquilo que se tem.
A verdadeira felicidade está, antes de mais, naquilo que somos.
Naquilo que fazemos e nos dá prazer. Ou nos permite contribuir para tornar outros mais felizes. 
A verdadeira felicidade está, aliás, ao alcance de todos se... todos quiserem construir um mundo mais feliz com pessoas felizes. 
Infelizmente, as situações de absoluta infelicidade continuam a invadir as nossas vidas hum pouco por todo o lado. E assumem formas tão diversas como doença, fome, guerra, insegurança, violência ou repressão. 
Contudo, uma coisa é certa. Alterar a situação não depende dos outros. Depende, em primeiro lugar e primordialmente, de cada um de nós e do que nós quisermos fazer na nossa passagem pelo planeta Terra.

Março/2019
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Publicado no Nº 9 da revista "Sem Equívocos"

Europa

1
2019 será o ano de mais umas eleições para o Parlamento Europeu. São eleições muito importantes pois é a nível europeu que muitas decisões que produzirão grande impacto nas nossas vidas serão tomadas.
Por isso, sempre considerei estranho o elevado nível de abstenção que não tem abrandado. Mais de metade dos eleitores têm ficado em casa.
Onde residirá o problema? Será que os eleitores vêem o Parlamento Europeu como algo de muito distante e sobre o qual não valerá a pena pensar ou agir?
Esta falsa sensação de distância e de indiferença é muito perigosa. Por dois motivos: permite que os eleitos exerçam os seus mandatos ainda mais longe dos seus eleitores. E possibilita a criação de um vazio de intervenção dos eleitores no escrutínio das decisões e das políticas europeias.
Sem controle nem vigilância, o que temos? Deputados europeus que estão satisfeitos com o seu desempenho (ainda que seja nulo...) e que não têm de apresentar contas sobre nada (quando muito, basta que digam sim às direcções partidárias de forma a garantir o lugar elegível...).

2
Outro sinal perigoso desta situação de divórcio é a falta de comunicação entre eleitos e eleitores e a ausência de informação fidedigna sobre o seu desempenho político: que propostas apresentaram ou subscreveram?
Qual o seu sentido de voto nas questões mais relevantes (exemplo: migrações, soberania nacional em contexto europeu, segurança comum, condenação de práticas anti-democráticas por parte de movimentos populistas e extremistas, etc.)?
Assim, conseguimos ter representantes nossos mas não sabemos de que forma nos representam? Essa situação é muito vantajosa para os que não cumprem, para os que lá estão para se servirem e não para nos servir e representar. Aliás, pode até criar uma injusta (e perigosa) convicção de que “eles são todos iguais”...

3
Se estes são apenas alguns dos perigos reais, vale a pena pensar se faz sentido deixar andar em roda livre esta imensa máquina europeia ou se vale a pena votar e tornar as questões europeias num tema central do debate político em Portugal.
Não é preciso fazer muito. Basta fazer alguma coisa. Do ponto de vista cívico, em Maio, ir votar. Depois, semana a semana, procurar informações sobre o que realmente se passa no Parlamento Europeu e escrutinar (e avaliar) a actividade dos nossos representantes. E, de forma regular e interessada, tomar posição e ter opinião. A democracia não significa entregar o poder aos eleitos.
Sempre que, de forma acéfala ou por desinteresse, nos alheámos do processo político e nos demitimos dos nossos deveres de cidadãos, as coisas não correram nada bem.
É bom exigir direitos. Mas o importante é cumprir os nossos deveres de cidadania. 
Como é óbvio, não falta quem nos queira distrair do essencial para continuar a mandar sem regras e sem limitações. Essa é uma das formas essenciais da manipulação. Estejamos pois atentos e activos.
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in Jornal Tornado (15/03/2019)

Da educação e da família

1
As famílias estão a mudar porque tudo à nossa volta também está a mudar. E a mudar de forma rápida ou... muito rápida. Excessivamente rápida para alguns. Com a velocidade estonteante a que as coisas mudam, estamos a perder os referenciais. A educação é um deles.
Numa perspectiva básica, a educação pressupõe não só a existência de alunos mas também (e sobretudo) de professores que ensinem múltiplas matérias, estimulem a pesquisa, estruturem a busca do conhecimento, suscitem dúvidas, ajudem a descobrir e promovam o desenvolvimento de crianças e jovens.
Dito isto, interrogo-me sobre o facto das vantagens de muitos pais delegarem (excessivamente) na Escola e nos professores a tarefa de educar os seus filhos.

2
Poucos pais aceitarão reconhecer a excessiva dependência da Escola e dos professores porque não é politicamente correcto e porque seria, talvez, o reconhecimento da sua incapacidade ou da sua indisponibilidade.
E, por falar em indisponibilidade, a vida profissional (e as suas exigências) é, talvez, o maior factor de desequilíbrio na vida das pessoas e, por contágio, da vida das famílias. E, por consequência, da vida das crianças e jovens e do seu desempenho escolar.
Sem querer defender uma relação de causa efeito, a verdade é que isto anda tudo ligado: os pais estão muito ocupados nas suas vidas profissionais e dispõem de pouco tempo para o resto. Tendo pouco tempo para o resto (incluindo a educação), delegam na Escola e nos professores. Por seu turno, os professores nem sempre estão preparados para serem professores e, ao mesmo tempo, educadores num sentido mais vasto. E, depois, há ainda o recurso a explicações e a centros de estudo para que a aprendizagem seja mais eficaz.
Portanto, podemos dizer que há um “sistema integrado” de substituições: Professores substituem/complementam os pais, explicadores substituem/complementam os professores. Finalmente, a Internet está sempre disponível: o Senhor Google é muito simpático, a Dona Wikipedia muito útil. E há ainda uma infindável panóplia de opções com plataformas de trabalhos escolares feitos (uns gratuitos e outros pagos) e facilmente copiáveis.

3
Ou seja, quando falamos de educação estamos, afinal, a falar de quê? Estamos a falar de um processo com múltiplos intervenientes que, muitas vezes, podem não estar alinhados nem apoiar de forma convergente.
Neste processo complexo, há opções a fazer pelas famílias, pela escola e, já agora, pelos educandos.
As famílias têm de optar por uma maior proximidade e disponibilidade de forma a poderem participar mais activamente na educação. E contribuir para que o processo seja integrado e não apenas uma mera aquisição de conhecimentos.
A grande questão é mesmo essa: educação não é só aquisição de conhecimento. Isso a escola e os professores podem fazer. A educação integral passa, como é óbvio, por muito mais do que o saber escolar convencional. Deve ajudar a saber fazer, a saber estar, a saber pensar, a saber decidir, a saber viver e a saber respeitar. Em síntese, a saber ser um ser humano que vive em sociedade com princípios, valores, ideais e objectivos.
Para este nobre desígnio, ou mobilizamos todos os intervenientes ou corremos o risco de falhar. Se olharmos para este problema de forma isolada e parcial, teremos resultados incompletos e insuficientes. E não falo só de insucesso escolar. Estou a pensar num falhanço muito mais grave com reflexos na vida de crianças e jovens: não os preparar num sentido global para a vida.

4
O século XXI tem trazido consigo imensos desafios. O desafio a educação é essencial. Se persistirmos na estratégia do “sistema integrado” de substituições, o futuro estará comprometido.
O futuro desenha-se hoje com as opções que somos capazes de fazer. Podemos adiar, podemos assobiar para o lado ou podemos mudar o paradigma da nossas vidas e apostar na educação. E, neste contacto, a família tem o papel maior porque pode ser o ambiente activador da visão integrada e completa da educação. Ou pode ser apenas um espaço de coexistência física e funcional, que seria um absoluto desastre.
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Publicado no Nº 8 da revista "Sem Equívocos"

Enfermeiros: a Greve Absurda

1
Uma declaração de princípio antes de reflectir sobre a greve dos enfermeiros que parece nunca mais acabar. Por princípio, sou favorável ao direito à greve, que é uma das armas que os trabalhadores podem usar para reivindicarem os seus direitos e defenderem os seus interesses. Como é óbvio, acho que é um direito fundamental e livre que só deve obedecer a um conjunto de regras estabelecidas pela legislação. 
Para mim também é claro que há situações em que as greves não deviam existir. Profissionais como polícias, médicos ou enfermeiros deveriam ter restrições (ou até impedimentos legais) quanto a este direito em função do tipo de actividade que desenvolvem e dos serviços que prestam à sociedade. Não me parece lógico que a saúde e a segurança de todos nós possam ser postos em causa através desta forma de luta.

2
Neste contexto, a actual greve dos enfermeiros parece-me absurda pois, mais do que expressar legítimas aspirações a que esta classe profissional ambiciona, está a prejudicar diariamente a saúde de milhares e milhares de pessoas. 
Pior: os sindicatos envolvidos e os profissionais não se preocuparam sequer em assegurar o pleno cumprimento dos serviços mínimos legalmente estipulados.
Tenho grande dificuldade em estar minimamente de acordo com esta forma de actuação em que trabalhadores olham mais depressa para os seus interesses de grupo em vez de, pelo menos, assegurar as suas obrigações com pessoas (também elas trabalhadoras...) que delas tanto precisam: doentes graves e intervenções cirúrgicas urgentes ou mesmo inadiáveis.

3
Uma outra questão que me choca é a do financiamento dos grevistas através de um fundo cujo origem ainda não é transparente e que só pode suscitar legítimas dúvidas. Quem o criou? Quem o financia? Porque é que os nomes das pessoas que o têm financiado não pode ser divulgado? O que têm a esconder? 

4
Finalmente, a questão da ameaça de entrada em greve de fome do Presidente de um dos sindicatos de enfermeiros. Qual o sentido e qual o objectivo desta dramatização e desta agudização do conflito? 
Um bom princípio em gestão de conflitos é nunca abrir uma porta sem se saber como a poderemos fechar. A iniciativa pode dar uma excelente reportagem de jornalistas ávidos de sensacionalismo,  drama e emoções...
Mas, de que forma contribui para a solução do problema?
Já agora, seria interessante que os mesmos jornalistas que tanta atenção “jornalística” têm dispensado à greve e aos grevistas dedicassem também algum tempo a ouvir e relatar os verdadeiros dramas de doentes que viram as suas cirurgias adiadas. Que relatassem as situações ilegais em que se adiaram cirurgias que, pela sua urgência e importância, estavam ao abrigo dos serviços mínimos.

5
Em conclusão, considero lamentável que se use o direito à greve desta forma absurda e irresponsável. Nenhum direito laboral deveria sobrepor-se ao direito à saúde dos outros cidadãos. Por muito justas que sejam as reivindicações dos enfermeiros, esta é a melhor forma para que se tornem mesquinhas e insensatas aos olhos da sociedade e de todos nós.
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in Jornal Tornado (25/02/2019)

Pequenos Pormenores ou Grandes Problemas

1
A comunicação social tem divulgado, nos últimos meses, um conjunto de factos e notícias sobre a falta de princípios éticos de diversos deputados à nossa Assembleia da República, designadamente: falsas declarações de residência para obter um subsídio, viagens para as regiões autónomas com recebimento indevido de apoio financeiro e a marcação de presenças por parte de um colega de bancada quando um deputado está ausente. Sempre com um qualquer tipo de benefício ilegítimo.

2
A questão da imagem dos nossos deputados junto dos cidadãos há muito que se coloca e estes casos mais recentes apenas corroboram a ideia de que mais do que servir o país e os seus eleitores, alguns (sublinho: alguns) deputados tratam da sua vidinha, das suas regalias e, obviamente, das suas bolsas...
A questão em si já é grave e devia, se se confirmar, conduzir à perda de mandato pois mentir, apropriar-se de valores que não lhe são devidos ou utilizar esquemas pouco claros para os obter não são, definitivamente, a melhor referência para qualquer um de nós e, menos ainda, para um deputado. Por isso, tem de ser sancionada sob pena de gerar uma sensação de impunidade.

3
Neste contexto, vale a pena falar destes supostos pormenores no sentido de os denunciar e de tentar, de alguma forma, mobilizar a opinião pública para que não se continuem a verificar.
Do meu ponto de vista, devíamos aproveitar estas questões para, com ponderação mas também com veemência, condenar todos os deputados que incorram nessas práticas ilícitas e, sobretudo, moralmente reprováveis. 
Ao mesmo tempo, a Assembleia da República devia tomar as decisões que, no âmbito do seu quadro de gestão e de princípios de funcionamento, criassem condições claras e objectivas para que estas manigâncias não voltassem a repetir-se.
Infelizmente e de forma irresponsável, não é a isso que assistimos. Passaram já várias semanas e nada de relevante foi feito. Nada de significativo foi decidido: nem no parlamento, nem nos grupos parlamentares dos partidos. 
A palavra de ordem foi investigar. Talvez nomear um grupo de trabalho, que produza um relatório cujas conclusões sejam debatidas e... entretanto, na sociedade, nas ruas, nos cafés, nas conversas o que continuamos a ouvir o desgastado mas eficaz discurso do “são todos iguais”, do “vão para lá é para roubar”, do “uma corja”... 

4
O efeito corrosivo das práticas dos deputados na sociedade é muito grande. Os impactos na saúde da nossa democracia são enormes e tendem a aumentar. 
A forma leviana como partidos, instituições, deputados e outros actores políticos encaram esta situação como se se tratassem de pequenos pormenores é mais do que preocupante. Se isso, daqui a algum tempo, facilitar uma deriva populista será um grande problema. 

5
Finalmente, uma palavra de tristeza. A própria comunicação social em vez de continuar alerta e de persistir no tema, acaba por o deixar cair no esquecimento que é uma outra forma de cumplicidade.
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in Jornal Tornado (15/01/2019)

O Exemplo das Crianças

“Mar transparente como eu. No meu mar não há náufragos. Eu aceito tudo e todos.”
Maria Luísa Ferreira

1.
As sucessivas vagas de migrantes que chegam de países sub-desenvolvidos tornou-se um dos grandes temas da actualidade na Europa e também nos EUA. As reacções são díspares variando da recusa ou repulsa até ao acolhimento solidário e generoso. 
Alguns líderes estimulam a rejeição evocando o perigo do terrorismo ou a possibilidade de os recém-chegados poderem roubar empregos ou ser potenciais criminosos.
Está, pois, criado um ambiente que pode ser de hostilidade mais ou menos agressiva. Nós, portugueses, somos de uma forma global solidários e receptivos e ainda não houve uma vaga contra os imigrantes. 
Por outro lado, sem que se perceba bem porquê, têm sido poucos os que escolhem o nosso país como destino depois das suas dramáticas fugas dos países de origem. Por isso, este parece não ser ainda um problema ou sequer uma questão para nós. Por isso mesmo me parece importante reflectir agora, sem pressão nem paixão, sobre aquele que será um dos problemas importantes dos próximos anos para a Europa e, mais tarde ou mais cedo, para Portugal.

2.
Uma primeira ideia é para mim muito clara: a situação de vida nos países de origem destas pessoas é absolutamente inaceitável e insustentável. Pode ser a guerra, a fome, a violência, a miséria, o banditismo, a ausência de qualquer lei ou a existência de um regime ditatorial e desumano. Em síntese, a falta das mais elementares e básicas condições de uma vida minimamente digna. 
Só assim se pode explicar que as pessoas aceitem colocar-se a caminho de algo que não sabem bem o que é mas que acreditam que será melhor, mesmo que seja apenas um pouco melhor. Mesmo que implique colocar a sua vida em risco. Mesmo que signifique centenas (ou milhares) de quilómetros de viagens perigosas. Mesmo que obrigue a deixar para trás a sua casa, a sua família e as suas origens. Mesmo que sejam forçados a pagar a crápulas que ganham muito dinheiro com a sua situação mas que não asseguram sequer o seu transporte em segurança.

3.
Neste enquadramento, podemos perceber as causas directas. Claro que podemos escrever frases bonitas e reflexões ponderosas sobre política internacional, sobre estratégia nas relações bilaterais, sobre condições naturais, sobre tradições, sobre convenções, sobre a inevitabilidade da desigualdade e outras banalidades. Nós sabemos qual é a real origem da situação que obriga milhares (ou milhões) de pessoas a fugir. 
Mas, qual pode ser a solução? Não creio que possa existir uma resposta fácil a esta simples pergunta. De tudo o que reflecti sobre o assunto, parece-me cada vez mais evidente que a melhor solução seria a comunidade internacional ajudar de forma activa na criação de condições para o desenvolvimento integrado da qualidade de vida destas pessoas. Isso significaria que, em vez de gastarmos recursos a construir obstáculos para evitar a sua fuga e posterior chegada aos nossos países, devíamos apostar em desenvolver a economia, estimular a educação, criar emprego, gerar riqueza nos seus países. 
Se as pessoas tiverem um emprego, acesso a educação, uma casa para viver e um sistema básico que assegure uma vida digna não precisarão de procurar outros destinos. Será isso possível? Eu acredito que sim. O que tem de mudar é o paradigma em que se baseia a política internacional. O que tem de mudar são os fundamentos de uma ajuda que é, obviamente, muito útil para evitar maiores catástrofes mas que não resolve o problema. Temos de investir menos em meios de destruição (e não falo só de armas...) e mais em meios de construção (escolas, hospitais, estruturas económicas, organizações empresariais, habitações, etc.).

4.
No século XX, milhares de portugueses sairam de Portugal em busca de trabalho e de uma outra situação para si, para as suas famílias e para os seus filhos. França, Alemanha, Luxemburgo, EUA, Venezuela e muitos outros países foram o destino. E por lá ficaram durante anos e anos. Levaram família e criaram descendentes. Montaram os seus negócios ou foram trabalhadores exemplares ajudando ao crescimento de empresas e de muitos países. Muitos fugiram à miséria que por cá viviam. Todos desejaram uma vida melhor e lutaram por ela. 
Hoje, são milhões os portugueses espalhados um pouco por todo o mundo. E nós temos orgulho no seu exemplo. Porque não desistiram e porque quiseram construir um outro destino para as suas vidas. Por isso, podemos certamente compreender as razões que levam milhares de pessoas a buscar abrigo na Europa ou noutros países mais desenvolvidos. Da mesma forma que gostámos que os nossos emigrantes fossem acolhidos noutros países, parece-me lógico que sejamos nós agora a dar a mão e a acolher os desesperados que nos batam à porta. 

5.
Evidentemente, a coexistência com o “outro” pode fazer-nos sentir algum desconforto. Mas, se pensarmos bem, podemos olhar para o exemplo que muitas crianças portuguesas (e estrangeiras) já hoje dão em escolas onde há crianças de vários países e de culturas bem diferentes. Se olharmos, o que vemos? Crianças brincando umas com as outras, descobrindo novos hábitos, vivenciando outras comidas, celebrando outras festas e aprendendo outras línguas.
O exemplo das crianças é o caminho que devemos seguir. São diferentes, compreendem que são diferentes mas isso não é uma ameaça mas sim mais uma vantagem. Não tem qualquer importância quando respeitamos e aceitamos o nosso vizinho, colega ou amigo. O mundo será muito melhor se for comandado por esta visão: aberta, solidária, acolhedora e amiga.
Novembro/2018
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Publicado no Nº 7 da revista "Sem Equívocos"